A Lenda
O povo Barrosão, na sua raiz cultural, tem ao longo dos tempos conciliado uma profunda crença religiosa com a tradição pagã, medicina popular, rituais e lendas que influenciam a forma como vivem e se relacionam com a natureza. A Ponte da Misarela é um bom exemplo disso!


LENDA DA MISARELA

  Conta-se que em tempos idos, um homem, fugitivo da justiça, escondia-se na vegetação e fragas do rio Rabagão. Finalmente descoberto e encurralado pelos que o procuravam, viu-se sem fuga junto à margem de um rio revoltoso envolvido com margens escarpadas e penhascos inultrapassáveis. Sentindo a perda da sua liberdade cada vez mais próximo, desesperado, exclamou ao céu escuro de uma noite gélida:

  - Por Deus ou pelo diabo, troco a minha alma por uma ponte!

  Labaredas iluminaram a noite e em cima de uma ponte vinda do nada aproximou-se uma grotesca criatura, chifruda, de tom tão vermelho quanto o fogo que ardia à sua volta. O fugitivo encolheu-se e ainda lhe passou pelo pensamento fugir, mas a alternativa ou a incapacidade de se mover manteve-o imóvel à espera do destino.

  - Deixo-te passar, desde que cumpras a troca que há pouco ofereceste. Permito-te a passagem e tu dás-me a alma! – retumbou o diabo numa voz vinda das profundezas que arrepiava qualquer mortal.

  O fugitivo sem hesitar, vendo a liberdade no seu pensamento, assentiu na proposta: - Sim! Sim! A minha alma é tua, mas deixa-me passar! Rápido, que já ouço os cães!

  Passado algum tempo, arrependido, a tentar viver sem crime, a ideia de ter vendido a alma começou a assustá-lo, pois não se via a arder eternamente no fogo do inferno. Pensou que só Deus podia desfazer a promessa, mas como não respondia às suas preces, ganhou coragem e foi ter com o padre, em confissão, para ver lhe encontrava uma solução.

  O padre deixou-lhe a promessa de tentar resgatar a sua alma ao diabo. Pegou numa caldeirinha com água benta e ao chegar ao mesmo local onde o fugitivo atravessou, fez tal e qual e, nesse mesmo instante apareceu-lhe o diabo que perguntou: - Dás-me a tua alma?

  O padre que tinha embebido um ramo de oliveira na água benta, respondeu-lhe: - Tu é que me vais dar a ponte! – e aspergiu o diabo que desapareceu num estrondo que ecoou nas águas do Rabagão e deixou um cheiro diabólico a enxofre.

  A ponte permaneceu e foi cristianizada pela benzedura com que o padre finalizou a sua luta contra o mal.

 

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RITUAL DA MISARELA

  A lenda do fugitivo, o paganismo da fertilidade da água, a crença de que Santa Senhorinha e São Gervásio atravessaram a ponte para se dirigirem a Compostela e ao mosteiro de Celanova, na Galiza ao encontro do primo, S. Rosendo, contextualizam o poder mágico da Ponte da Misarela e da sua água e do ritual que perdura ainda nos nossos dias.

             As gentes barrosãs, pela necessidade e hábito, sempre foram trabalhadoras da terra, em particular, as barrosãs, que não se podiam ao luxo de ficar em casa mesmo quando estavam grávidas. A resistência, abnegação e sacrifício destas mulheres fazia com que, frequentemente, tivessem abortos espontâneos e o sucesso de uma gravidez era uma probabilidade entregue ao destino do se Deus quiser!

Normalmente apresentado como uma lenda, na verdade, foi e é um ritual a que muitas mulheres recorreram para ter um filho.

             A mulher que não conseguia vingar a gravidez, quando se apercebia que estava prenhe, planeia uma ida à Ponte da Misarela antes da meia-noite. O casal leva uma corda e um púcaro, acende uma fogueira no meio do arco da ponte e aguarda que passe a primeira pessoa para que o batismo se realize.

            Durante a espera, o homem, tem de ter atenção redobrada, pois tem de enxotar os animais que tentem atravessar a ponte e não podem deixar passar ninguém que rejeite ser apadrinhar o batismo. A mulher permanece no centro da ponte, junto à fogueira, e aguarda o tempo que for necessário que pode ir até ao amanhecer.

            Hoje pode ser mais difícil, mas antigamente era mais frequente a passagem de pessoas durante a noite e quando encontravam um casal nestas circunstâncias sentiam o dever moral de aceitarem ser padrinhos ou madrinhas e fazer o batismo. Caso não passasse ninguém, teriam de lá voltar até a sorte os assistir.

            Quando passava alguém, dirigia-se com o marido para o centro da ponte, lançava o púcaro à água, a jusante, onde a água já passou a ponte e enche-o. Se não houver corda, trabalho é redobrado e terá de descer até à água, o que, para quem conhece, sabe que é um desafio, principalmente, à noite. Com o púcaro na mão, o padrinho ou madrinha, vai vertendo a água na barriga desnudada da grávida, ao mesmo tempo que pronuncia:

             “Eu te batizo,

criatura de Deus,

pelo poder de Deus

e da Virgem Maria.

Se for rapaz, será Gervaz,

se for rapariga, será Senhorinha.

Pelo poder de Deus e da Virgem Maria,

Um Padre-Nosso e uma Avé-Maria.”

             Rezam o Pai Nosso e a Avé Maria, mas não se diz amén no final.

             Após este ritual, a garantia de sucesso de uma gravidez deveria ser muito alta pela quantidade de pessoas de nome Gervaz e Senhorinha que habitaram e ainda habitam, em menor número, na região.

           

 OUTRAS ESTÓRIAS

             Há uma estória da tradição oral pagã, também mística, talvez inspirada na beleza agreste e lúgubre dos enormes penedos e assustadores na ausência de luz. Diz-se que em noite de lua azul, segunda lua cheia no mesmo mês, as bruxas das redondezas reúnem-se em magno concílio pois é um período ideal para feitiços e magias. Dançam à volta de fogueiras e aguardam instruções do Demo que lhes vai falar à meia-noite no cimo do Púlpito do Diabo, um conjunto de enormes rochedos que se situam na margem esquerda do rio Rabagão e da Ponte da Misarela.

Há quem diga que a Ponte da Misarela foi feita pelos mouros. Na zona da ponte há muitos rastos de mouros. Há desenhos gravados nas pedras e há minas. Com alguma proximidade, há também um penedo chamado a mesa dos mouros, que pode conhecer se fizer o trilho “Entre Cávado e Rabagão”, onde se associa um culto mourisco. Próximo da mesa dos mouros, existia uma pedra, entretanto desaparecida, com a gravação de uma ferradura de um cavalo e outra, também desaparecida, com um metro de altura e um buraco no meio que poderia ser uma pia batismal. 

A ponte da Misarela também foi palco de um episódio histórico de Portugal, onde houve um foco de resistência durante a segunda invasão napoleónica e que muito honra as gentes de Sidrós, Vila Nova e Ruivães pela sua coragem. Mas esta história, conta-se noutro separador deste site. 

Também fazemos referência a um romance histórico, “O Mutilado de Ruivães”, que conta muitos pormenores desta invasão francesa.

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