Mutilado de Ruivães
A ponte da Misarela

[excerto do romance histórico "O mutilado de Ruivães - Das invasões francesas às lutas civis", de Mário Moutinho e A. Sousa e Silva, Braga, 1980]
"É uma ponte de arquitectura extravagante, louca, de um só arco, com mais de treze metros de vão, lançada com arrojo sobre dois rochedos, onde as águas do Rabagão se estreitam e despedaçam com fragor e saltam a grande altura, transformando-se em vaporosa chuva. O pavimento, abaúlado, mede 27 metros de comprimento. Fica no fundo de um desfiladeiro alcantilado, a um quilómetro da confluência do Rabagão com o Cávado. Tão medonho e agreste é o sítio e tão severo o aspecto da ponte, que a vivíssima imaginação do povo não tardou a tecer-lhe lendas.
Diz-se que um padre, querendo fazer uma pirraça ao Diabo, se disfarçou em salteador perseguido pelas justiças de Montalegre, e foi certo dia, à meia-noite, àquele lugar para passar o rio. Como o não pudesse passar, por meio de esconjuros, invocou o auxílio do Inimigo. Ouve-se um rumor subterrâneo e eis que aparece, afável e chamejante, o anjo rebelde:
- 'Que queres de mim?' - perguntou ele.
- 'Passa-me para o outro lado e dar-te-ei a minha alma.'
Satanás, que antegozava já a perdição do sacerdote, estendeu-lhe um pedaço de pergaminho garatujado e uma pena molhada em saliva negra, dizendo:
- 'Assina!'.
O padre assinou. O Demónio fez um gesto cabalístico e uma ponte saiu do seio horrendo das trevas.
O clérigo passa e, enquanto o diabo esfrega um olho, saca da caldeirinha da água benta, que escondera debaixo da capa de burel, e asparge com ela a infernal alvenaria, fazendo o sinal da cruz e pronunciando bem vincadas as palavras do exorcismo.
Lúcifer, logrado, deu um berro bestial e desapareceu num boqueirão aberto na rocha, por onde sairam línguas de fogo, estrondos vulcânicos e fumos pestilenciais.
  
O vulgo das redondezas, na sua ignorância e ingenuidade, e não sabemos a origem, aproveitaa-se da ponte para ali exercer um rito singular.
Quando uma mulher, decorridos que sejam dezoito meses após o seu enlace matrimonial, não houver concebido, ou, quando pejada, se prevê um parto difícil ou perigoso, não tem mais que ir à Misarela, à noite, para obter um feliz sucesso. Ali, com o marido e outros familiares, espera que passe o primeiro viandante. Este é então convidado para proceder à cerimónia, a qual consiste no baptismo in ventris do novo ou futuro ser. Para isso, o caminhante colhe, por meio de uma comprida corda com um vaso adaptado a uma das extremidades, um pouco de água do rio e com a mão em concha deita-a no ventre da paciente por um pequeno rasgão aberto no vestuário para este efeito, acompanhando a oração com a seguinte ladainha:
   
Eu te baptizo
criatura de Deus,
Pelo poder de Deus,
e da Virgem Maria.
Se for rapaz, será Gervaz;
se for rapariga, será Senhorinha.
Pelo poder de Deus e da Virgem Maria,
um Padre-Nosso e uma Avé-Maria.
 
O barulhar iracundo da cachoeira no abismo imprime a estas cenas um cunho de tétrica magia.
Segue-se depois uma lauta ceia, assistindo, geralmente, o improvisado padrinho. E o êxito é completo: um neófito virá alegrar a família.
Claro que se na primeira noite não passar o viandante desejado, a viagem à Misarela repetir-se-á até o cerimonial se realizar nas condições devidas.
De um dos lados ergue-se um enorme rochedo que o povo denominou 'Púlpito do Diabo', por crer que o Demo vai ali pregar à meia-noite, quando as bruxas das redondezas se reunem em magno concílio..."

 

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